O Gênesis é o primeiro livro da Bíblia e parte de um projeto que une os livros da Torá com Josué, Juízes, Samuel e Reis em uma configuração: desde a criação do mundo, a escolha do povo de Israel e seu estabelecimento em Canaã, até o cativeiro dos hebreus na Babilônia.
A palavra chave para compreendermos o referido livro é “toledot”, literalmente procriações em português. As procriações propiciam uma estrutura sólida que sustenta e articula meticulosamente as várias seções do Gênesis.
Toledot completa dois ciclos em Abraão e Jacó, Noé e o Dilúvio, o início do ciclo de Jacó, e o início da história de José.
Assim, as vidas dos protagonistas Abraão, Jacó e José são apresentadas dentro da estrutura das procriações de seus pais (Terá, Isaque e Jacó). Essa imagem de concatenação revela a consideração maior do livro inteiro: vida-sobrevivência-descendência-fertilidade-continuidade.
As possibilidades, limites e aspectos precários da sexualidade são expressamente explorados em, entre outros textos: 12:10-20; 20; e 26:1 – 11; em histórias nas quais mulheres lutam entre si pela maternidade.
“E multiplicarei tua descendência como as estrelas do céu, e darei à tua descendência todas estas terras, e serão abençoadas por tua descendência todas as nações da terra. Porque Abrahão escutou Minha voz e guardou Minha sentença, Meus mandamentos, Meus estatutos e Minhas leis. E Isaac ficou em Guerar.” Gênesis, 26:4 – 6.
Uma história interessante é a de Tamar, nora de Judá, esposa do filho mais velho dele, chamado Er.
Er foi mal aos olhos de Deus, que o matou. Pela lei do levirato, Tamar passaria a ser esposa do segundo irmão – Onán. Essa lei era uma maneira de não deixar a mulher abandonada.
Onán se tornou esposo de Tamar, mas por achar que os filhos não seriam oficialmente dele, mas de Er, jogava seu sêmen no chão. Então, Deus o matou também.
E Judá disse à sua nora para ficar como viúva na casa de seus pais, até que seu terceiro filho – Shelá crescesse.
No entanto, o menino cresceu e Judá, possivelmente ficou com medo de Shelá morrer também e não deu o rapaz.
Tamar precisava ter filhos e só poderia ser com algum homem daquela família, então a moça cobriu o rosto e se vestiu como uma prostituta e esperou o sogro, que havia ficado viúvo, passar em um determinado lugar, a jovem conseguiu engravidar dele.
Depois disseram a Judá, sua nora adulterou, pois está grávida. A população iria matá-la, só que Tamar tinha ficado com o anel, o manto e a vara do sogro.
“E Judá reconheceu e disse: Ela é mais justa do que eu, porque não a dei a Shelá, meu filho! – e nunca mais tornou a conhece-la.” Gênesis, 38:26
Percebemos como o mandamento da procriação era levado as últimas consequências.
Todas as três matriarcas, Sara, Rebeca e Raquel são estéreis – um obstáculo intransponível à continuidade. No entanto, as três tiveram filhos dados por Deus, esse fato demonstra que o fato de criar filhos é algo divino.
Além disso, a importância da primogenitura é três vezes subvertida ou ironizada: Ismael é mais velho que Isaque, também é portador da promessa; Jacó supera Esaú como rival, mas paga um alto preço, por ter enganado o pai, ele é posteriormente ludibriado pelo sogro e teve que trabalhar como escravo para o pai de Raquel por 14 anos.
Seja qual for o aspecto que considerarmos no texto literário: tema, coordenação tempo e espaço e enredo nos níveis da história, os meios que criam coesão e concórdia são tão poderosos que sobrepujam os aspectos de discórdia, ou seja, as ideias são muito bem encadeadas.
Outra parte importante para a compreensão do Gênesis é a interação entre prosa e poesia e o efeito produzido pela interseção dos dois gêneros. Então, deveríamos examinar o efeito dos comprimentos diferentes dos episódios e como os pontos de vista do narrador e personagens imitam solapam ou enriquecem uns aos outros.
Os poemas curtos no Gênesis têm uma função especial no fluxo narrativo, servindo como ponto de cristalização, eles criam momentos de reflexão. Em uma fórmula poderosa e compacta, para que o leitor não se perca.
“E Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea criou-os.” Gênesis, 1:27.
Também: 2:23. Juntas, elas mostram que a essência do homem é definida por duas dimensões dialógicas, sua relação com o parceiro e sua relação com Deus.
O paralelismo de 1:27 (“Deus criou o homem à sua imagem, /à imagem de Deus ele o criou,/homem e mulher ele os criou) sugere que a humanidade é apenas, em sua condição dupla, a imagem de Deus, o qual, por sua vez, incorpora a igualdade fundamental de homem e mulher.
O pecado do homem no capítulo 3 evoca a questão temerosa: “A imagem de Deus será preservada em nós?” Ela recebe uma resposta positiva através do fio da poesia em 5:1 -2 (em 5:3 o homem agora chamado Adão, transmite a imagem de Deus à sua descendência).
Se tiver alguma dúvida sobre a leitura da Bíblia como Literatura, dá uma lida na resenha que fiz do texto: “A Cicatriz de Ulisses” de Eric Auerbach. Os textos bíblicos representam muito bem a estrutura psíquica do ser humano, com seus vários lados, incluindo as sombras.
Estou usando como referência a Tanah, baseada no Codex de Alepo (Bíblia Hebraica ou Velho Testamento) Hebraico/Português, da Editora Sêfer.
Estou lendo a Bíblia com esse viés, com a ajuda do livro Guia Literário da Bíblia e está sendo interessantíssimo, pois vemos a construção de uma civilização.
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