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Resenha livro: No Exílio – Elisa Lispector

No Exílio foi o primeiro livro que terminei da maratona literária, foi a literatura escolhida para representar um autor (a) brasileiro (a). Posso dizer, que devorei a obra, li em 3 dias, intercalando com Ripper da Isabel Allende.

A escrita de Elisa Lispector é bem diferente da de sua irmã Clarice Lispector. Clarice trabalha com questionamentos existencialistas e com o conceito de alteridade, enquanto Elisa prima pela memória e principalmente pelo resgate de suas raízes judaicas.

 Nádia Battella Gotlib define bem a diferença das duas escritoras: “Clarice tem técnica de artista e Elisa tem uma técnica de arquivo, ela fica no território da memória. ”

No Exílio é um livro autobiográfico de Elisa, escrito em 1948. A obra começa nos contando como os pais da escritora se conheceram. O casamento havia sido arranjado de acordo com a tradição judaica.

Família
Pinkhas, Elisa, Tania, Clarice (bebê) e Mania.

Elisa (Lizza) é a filha mais velha, nasceu em julho de 1911, no povoado de Sawranh, na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo. Posteriormente, nasceram a segunda filha do casal Tania (Ethel) e Clarice (no livro como Nina, o nome original é Chaya), a mãe chama-se Mania (Marim no livro, Marieta no Brasil) e o pai Pinkhas.

Posteriormente, lemos descrição da autora a respeito dos pogroms e da Revolução Russa e como a sua família lidou com as tragédias. Essa narrativa é particularmente interessante, pois ela nos transmite uma descrição detalhada dos ataques aos judeus e da guerra civil russa.

avós
Os avós e tias de Elisa Lispector. Mania está em pé à direita. O avô foi assassinado em um pogrom.

Segue um trecho do livro, em que Elisa descreve um pouco do cotidiano da Revolução Bolchevique: “Os homens iam para a morte sem uma razão. Todos os dias caçavam nas lavouras e nas isbás (casas típicas de camponeses russos), armavam-nos e os tangiam para a frente, arremessando-os contra inimigos que desconhecia e não tinham motivo para hostilizar. E os que iam não voltavam”.

Segundo relato da Cruz Vermelha até 1920, pelo menos 40 mil judeus foram assassinados. A seguir a descrição de como eram os pogroms: “O bando invade a cidade, espalha-se pelas ruas, grupos separados invadem as casas de judeus, matando sem distinção de idade e sexo todo mundo que encontram pela frente, com a diferença de que as mulheres são bestialmente estupradas antes de serem assassinadas, e os homens são obrigados a ceder tudo o que está na casa antes de serem mortos.

Tudo o que pode ser transportado é levado embora, o resto é destruído; as paredes, portas e janelas são quebradas, a procura de dinheiro. Quando um grupo parte, vem outro, e depois um terceiro, até que absolutamente nada que se possa levar é deixado na casa….Cada mudança de governo ou administração traz novos pogroms.”

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Crianças judias mortas em um  pogrom em Ekaterinoslav (Ucrânia) em 1905.

Houve pelo menos mil pogroms, durante a Revolução, cometidos por todo o Império Russo. “Em suas memórias não publicadas, Elisa escreve simplesmente: “Foi o trauma decorrente de um daqueles fatídicos pogroms que invalidou minha mãe. ”

O biógrafo de Clarice Lispector, Benjamin Moser levantou a hipótese de que Mania Lispector (mãe das escritoras) teria sido estuprada em um desses pogroms, pois ela tinha uma enfermidade, que a deixou paralítica, possivelmente causada por sífilis.

“Bem no fim da vida, Clarice confidenciou à amiga mais íntima que sua mãe fora violentada por um bando de soldados russos. Deles, ela contraiu sífilis, que nas pavorosas condições da guerra civil ficou sem tratamento”. Benjamin Moser. Clarice, p. 54.

Essa afirmação não é corroborada pela professora da USP Nádia Battella Gotlib (também biógrafa de Clarice), pois não há nenhuma comprovação de que Mania fora estuprada.

“Não se fica sabendo ao certo se a doença teria sido provocada, ou pelo menos agravada, pelo parto. Mas, de qualquer forma, Clarice recebe o impacto da doença da mãe como algo que se relaciona com sua própria existência como filha. ” Nádia Battella Gotlib, Clarice uma vida que se conta, p. 59.

No entanto, tem uma passagem em No Exílio, que me deixou muito intrigada: “Quando deu por si (Mania), estava na rua, de cabelos ao vento, a neve quase a atingir-lhe a cintura. Ao avistar dois milicianos vindo em sua direção, caiu-lhes aos pés, pedindo auxílio. Chorou, implorou, beijou-lhes as botas enlameadas. ” Percebe-se que Elisa nos dá uma pista do que aconteceu, ao mesmo tempo, não revela quase nada. 

Nunca teremos nenhuma comprovação, mas as chances de infelizmente, Mania ter sido violentada são grandes, visto que esse tipo de violência foi recorrente, durante a guerra civil. 

Segundo Benjamin Moser, no distrito de Haysyn na Ucrânia, onde a família Lispector residia, houve ao menos 29 pogroms. Segundo a Cruz Vermelha os ataques aos judeus nessa região foram os mais cruéis perpetrados.

Elisa descreve um dia após ao pogrom, com as mães chorando seus filhos e marido mortos e as mulheres que devido aos traumas perdiam a fala e algumas enlouqueceram.  

Durante um ataque à aldeia, Mania e as filhas pediram ajuda aos russos para passar a noite, em outra noite de pogrom elas ficaram escondidas no porão.

Pinkhas sobreviveu às noites sangrentas, pois estava trabalhando como mascate em outra cidade. Quando ele chegou em casa, se deparou com sua residência destruída. Nesse momento eles decidiram fugir.

O trajeto até conseguirem chegar em um porto e embarcarem no navio para o Brasil é longo e lotado de percalços, medo e fome.

Conforme a doença de Mania foi progredindo, Elisa foi assumindo as tarefas domésticas. Ela praticamente não teve infância.

No navio com destino ao Brasil, uma mulher percebe a situação precária da família e dá alguns bombons à Elisa, ela nunca tinha visto nada igual. Quando ela vai comer olha o pai triste e acaba jogando os chocolates no mar.

No Brasil os Lispector não encontram uma vida muito fácil. Morando no Recife, Pinkhas se torna mascate e é ajudado pelo cunhado, que o humilha. Eles chegam a quase passar fome.

Elisa tem uma vida exaustiva e de muito trabalho para sua idade. Ela descreve que na escola as crianças tinham uma vida comum, enquanto ela presenciou uma série de atrocidades. Ninguém conseguia compreender aquela menina tão adulta.

Na adolescência, alguns pretendentes aparecem, mas a jovem não consegue se interessar por ninguém. Esse fato causa lhe causa bastante angústia.

Elisa demonstra uma preocupação muito grande com a situação judaica, contrastando com Clarice, que nunca se pronunciou publicamente sobre o antissemitismo e também pouco falava sobre os percalços de sua família.

Fica a dica para vocês de um livro muito bom, que nos conta a história de duas excelentes e importantes escritoras! Para quem gosta da obra da Clarice Lispector, vale a pena conhecer um pouco da sua história, narrada por sua irmã mais velha – Elisa Lispector.

Maratona literária!

https://juorosco.blog/2018/01/17/maratona-literaria/

Entrevistas com Benjamin Moser e Nadia Battella Gotlib

Fotos:

 

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Resenha livro: A Farsa de Inês Pereira – Gil Vicente.

“Mais quero um asno que me leve, que um cavalo que me derrube.”

Gil Vicente (c. 1465— c. 1536) é considerado um dos maiores dramaturgos português. Além de ser um poeta de renome, também desempenhou tarefas de músico, ator e encenador.

No período vivido pelo autor, as viagens marítimas transformaram Portugal, a riqueza advinda do comércio de produtos com o Oriente promove o desenvolvimento da burguesia, com isso a estrutura feudal desestabiliza-se.

Com o afrouxamento das rígidas estruturas medievais, homens e mulheres começaram a vislumbrar a ascensão social por meio do casamento. A crítica a esse comportamento é um dos principais objetivos dessa peça.

As peças de Gil Vicente visavam apontar os vícios entranhados em todas as camadas sociais, com um humor inteligente que critica de maneira contundente a perversidade humana.

A Farsa de Inês Pereira foi escrita em 1523, e relata a história de uma jovem que acha a sua vida enfadonha, cheia de afazeres domésticos e quer se casar para se livrar dessa sina.

Isso é um ponto muito importante, pois denota uma consciência e um desgosto da protagonista com as funções, ditas femininas da época.

Enquanto, está reclamando da sua rotina, entra Leonor Vaz, a alcoviteira, assustada porque havia sido agarrada por um clérigo. (Temos uma crítica de Gil Vicente à falta de postura cristã dos clérigos).

Depois do susto, ela diz que trouxe uma proposta de casamento. Leonor entrega a carta de Pero Marques, um rústico e rico camponês, à Inês Pereira. A escrita dele revela seus modos provincianos.

Inês decide chamá-lo para uma visita a fim de humilhá-lo. Nesse ínterim, ela resolve contratar os judeus casamenteiros para lhe arrumar um rapaz de bons modos.

Nessa parte, entram em cena Latão e Vidal, que a convencem a se casar com Brás da Mata, um escudeiro, que a engana dizendo-se rico e a corteja com modas de viola.

Inês tem uma grande decepção quando se casa. O escudeiro a proíbe de sair de casa,  de ver a paisagem na janela e até de cantar.

Sua vida se torna um horror.  Para termos uma ideia, abaixo o trecho da conversa de Brás com a jovem.

Brás (Escudeiro): “Vós não haveis de mandar em casa somente um pelo. Se eu disser: Isto é novelo, havei-lo de confirmar. E mais, quando eu vier de fora, haveis de tremer; e coisa que vós digais não vos há de valer mais que aquilo que eu quiser.”

Brás da Mata vai a guerra e deixa o Moço cuidando dela. Ele diz que precisa fechá-la, pois recebeu ordens para isso. Assim, fica Inês o dia todo cantando essa cantiga:

“Quem bem tem e mal escolhe, por mal que lhe venha, não se anoje.”

Em um momento Inês recebe uma carta de seu irmão, comunicando o falecimento de Brás da Mata. Ele só havia matado “um muçulmano”, que ainda era pastor de ovelhas.

Leonor Vaz  aconselha Inês a se casar com Pero Marques, e dessa vez ela aceita. Morando com o seu novo marido, aparece um ermitão em sua porta, dizendo-se um antigo namorado, que havia tomado esse rumo na vida, por sentir muito a falta dela.

Inês marca um encontro com o ermitão e pede a Pero Marques, para carregá-la na passagem do rio. No caminho ela vai cantando músicas sobre sua traição e seu esposo não percebe. Assim, confirma-se o adágio popular:

“Mais quero um asno que me leve, que um cavalo que me derrube.”

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